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Colapsos Invisíveis
por Mario Goia
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Uma calçada repleta de pedaços azuis, extratos retirados de uma parede na qual antes vibrava um grafite, no multicolorido Beco do Batman, na Vila Madalena, em São Paulo. Talvez o chão salpicado de azul não atraia tanto o foco da câmera fotográfica de Ana Lucia Mariz quanto o muro marcado por rasgos, fendas, manchas e riscos, ao lado do estúdio da artista, e que provavelmente ganhará em breve mais uma intervenção.
Capturar esse estado transitório, constituído por intervalos plenos de significados, é uma das principais qualidades da obra de Mariz. O muro vizinho não fora alvo dela, mas certamente não deixará de ser registrado. A artista tem uma série sobre muros em desgaste, Cortes e Redobres, que, por circunstâncias diversas, foi raramente vista, mas que traça diálogos com boa parte de sua produção fotográfica. A ruína e a memória de existência frágil são dois eixos motrizes das imagens.
“Seria preciso, disse ele ainda, fazer um catálogo dos nossos edifícios, ordená-los segundo suas dimensões, e então ficaria imediatamente óbvio que os edifícios domésticos aquém das dimensões normais _ a cabana nos campos, a ermida, o casebre do guarda da eclusa, o pavilhão do belvedere, a casinha de crianças no jardim _ são aqueles que nos acenam ao menos com um vislumbre de paz, ao passo que ninguém em sã consciência diria que lhe agrada um edifício como o Palácio da Justiça de Bruxelas, sobre a antiga colina do patíbulo. No máximo a pessoa o admira, e essa admiração já é um prenúncio de terror, porque sabe como por instinto que os edifícios superdimensionados lançam previamente a sombra de sua própria destruição e são concebidos desde o início em vista de sua posterior existência como ruínas”1, assinala Sebald, escritor das reminiscências, nas letras e nas imagens (que intercalam pungentes narrativas), em Austerlitz.
Igreja do Nosso Senhor de Vera Cruz, Forte de Santo Antônio Além do Carmo, Igreja de São Francisco do Conde, Castelo Garcia D´Ávila, Igreja da Barroquinha. Todas são edificações já completamente em escombros ou em processo avançado de deterioração, na sua maioria. Seus nomes se encontram quase que apenas nas cartografias históricas e representam pouco dentro do cotidiano das comunidades baianas onde se situam esses prédios. Tal vertente coletada no Estado está presente em Alma Secreta, série de Mariz publicada em livro e exposta na Pinacoteca do Estado, em 2005. Adquirida pela Coleção Pirelli Masp de Fotografia, finalista do Prêmio Conrado Wessel de Arte e apresentada em edição do Prêmio Porto Seguro Fotografia, hoje, sete anos depois da exibição inicial, a série ganha uma outra leitura, na qual os poucos registros coloridos _ feitos com uma Lomo, bem antes do chato modismo do equipamento e do falso ar retrô do Instagram, onipresente nas redes sociais _ forjam um corpus robusto, em especial pela opção por um registro de contornos menos nítidos realizado em locais quase que despidos de história, mas povoados de narrativas menores e opacas, em bairros de classe média alta de SP. O procedimento parece catalisar distintos modos e formas em séries posteriores de Mariz.
Paisagens Azuis (2009) representa um importante passo no desenvolvimento da poética da artista por sintetizar novas pesquisas, mais relacionadas às artes visuais. Fotografando paisagens desenhadas em peças da fabulosa escola portuguesa de azulejos, em azul, e utilizando velocidades não recomendadas nos corriqueiros manuais de fotografia _ tal qual o light painting corroía o regular preto-e-branco em Alma Secreta_, Mariz se guia por um olhar mais experimental na construção de seus registros. Também cria elos com momentos-chave da modernidade na história da arte, como Chuva, Vapor e Velocidade (1844), de Turner, na captação fugidia do território e do movimento, e trabalhos e abordagens mais recentes, como o de Adriana Varejão em séries variadas, sempre a rediscutir o passado barroco-colonial do Brasil.
A reapropriação também começa a fazer parte do repertório da artista e encontra um eco exemplar na série Paisagens Esquecidas (2009). Uma caixa de papelão, pertencente ao avô paterno, é recebida por Mariz e se revela um tesouro. Fotos em slides e em registros típicos de época, tiradas em tom amador por ele em Campos do Jordão, viram matéria-prima para a artista com toda a ação do tempo guardada nelas. Marcas de fungos, manchas que criam desenhos, superfícies precárias, tudo isso vira um depósito ‘químico’ que reforça a efemeridade da memória retomada por Mariz, tornando ainda mais singular a melancólica repetição de araucárias, cercas de madeiras e barrancos nada verdejantes.
A artista também agora atua numa escala do fotográfico expandido, escolhendo outros suportes que não só o tradicional quadro. Assim, vai aprimorando os vídeos que realiza, desde A Procura do Que Não Está Lá (2010), apresentando na coletiva Ateliê Fidalga no Paço das Artes, uma de suas primeiras incursões nessa linguagem, até o enigmático Há Sempre Um Copo de Mar para Um Homem Navegar (2010). O primeiro traz a investigação de Mariz sobre a memória familiar, ao ter como protagonista sua filha em um ambiente expositivo cheio de estranheza. Já o vídeo que utiliza o título de poema de Jorge de Lima (1893-1953) também tira partido da metalinguagem, mas só revela em chave indicial o que é retratado. Se o hibridismo de fotografia e videoarte é tratado por ela nessas séries, outros recortes possíveis, como o desenho e a pintura norteando o registro fotográfico seriado, se esboçam na série Mar Adormecido (2010), em que luz e velocidade tênues fazem com que a imagem do mar quebrando na praia, à noite, ganhe contornos oníricos.
Recentemente, cruzando ainda referenciais da performance e da fotografia contemporânea, a artista trabalha na série Temps Perdu (2011) e cria aproximações com a produção de nomes que enfocam uma certa inexpressividade dos grandes aglomerados urbanos, contudo muito ligados a microhistórias e vivências ‘menores’. Mariz aproveita a casa agora desocupada onde passou a adolescência, no bairro paulistano do Jardim Guedala, e faz registros que exibem um lócus bastante deslocado da velocidade corrente, além de ter como protagonista um rapaz também em poses carregadas de crise. Tal moço é filho de Ana, o que dá a Temps Perdu uma carga de memória afetiva, assim como Jardins de Morfeu (2008-2009). Uma parede de cortiça ou uma paisagem de um campo longínquo e pacato ajudam a enriquecer a estranheza do ambiente. A artista, assim, parece criar um campo no qual convivem Duane Michals, Sally Mann, Hannah Collins e Sofia Borges, entre outros. E também não dista de ações experimentais feitas anteriormente, como Belvedere (2007), em que a colagem de imagens da metrópole onde vive, mais familiares ou menos usuais, escancara a intensa transformação pela qual o artista (e ainda mais uma paulistana) vive permanentemente.
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Mario Gioia
Graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), foi o curador, em 2011, de Presenças (Zipper Galeria), inaugurando o projeto Zip'Up, destinado a novos artistas (que teve como outras mostras Já Vou, de Alessandra Duarte, Aéreos, de Fabio Flaks, Perto Longe, de Aline van Langendonck, Paragem, de Laura Gorski, Hotel Tropical, de João Castilho,e a coletiva Território de Caça, com a mesma curadoria). Em 2010, fez Incompletudes (galeria Virgilio), Mediações (galeria Motor) e Espacialidades (galeria Central), além de ter realizado acompanhamento crítico de Ateliê Fidalga no Paço das Artes. Em 2009, fez as curadorias de Obra Menor (Ateliê 397) e Lugar Sim e Não (galeria Eduardo Fernandes). Foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como as revistas Bravo e Trópico e o portal UOL, além da revista espanhola Dardo. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes.
1. SEBALD, W.G. Austerlitz. Companhia das Letras, São Paulo, 2008, p. 22 e 23.